sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

VOCÊ VAI CHORAR?...

Eu chorei!..
QUANDO ME TORNEI INVISÍVEL
Já não sei em que data estamos. Lá em casa não há calendários e em minha memória as datas estão todas misturadas. Me recordo daquelas folhinhas grandes, lindas, ilustradas com imagens de santos que colocávamos ao lado da penteadeira. Já não há nada disso. Todas as coisas antigas foram desaparecendo. E sem que ninguém desse conta eu fui me apagando também...
Primeiro me trocaram de quarto, pois a família cresceu. Depois me passaram para outro menor ainda com a companhia das minhas bisnetas.

Agora ocupo um quartinho que há no pátio de trás. Prometeram trocar o vidro quebrado da janela, porém se esqueceram e todas as noites por ali circula ar gelado que aumenta minhas dores reumáticas. Mas tudo bem...

Desde há muito tempo tinha a intenção de escrever, porém passava semanas procurando um lápis. E quando o encontrava, eu mesma não sabia onde o havia posto; na minha idade as coisas se perdem facilmente; claro que não é uma enfemidade delas, das coisas, porque estou segura de tê-las, porém sempre desaparecem.

Noutra tarde dei-me conta de que minha voz também havia desaparecido. Quando eu falo com meus netos ou com meus filhos, eles não respondem. Todos conversam sem me olhar, como se eu não estivesse com eles, escutando tudo atentamente. As vezes intervenho na conversação, segura de que o que vou lhes dizer não ocorreu a nenhum deles e que lhes vai ser de grande utilidade. Porém não me ouvem, não me olham, não me respondem. Então, cheia de tristeza me retiro para meu quarto e vou beber minha xícara de café. E faço assim de propósito para que compreendam que estou aborrecida, para que se dêem conta de que me entristecem e venham buscar-me e me paçam perdão... Porém ninguém vem... Quando meu genro ficou doente, pensei ter a oportunidade de ser-lhe útil; lhe levei um chá especial que eu mesma preparei. Coloquei-o na mesinha e me sentei a esperar que o tomasse; só que ele estava vendo televisão e nem um só movimento me indicou que se dera conta da minha presença. O chá foi esfriando e junto com ele, meu coração...

Noutra ocasião lhe disse que quando eu morresse todos iriam se arrepender. Meu neto menor disse: "Ainda estás viva, vovó?" Eles acharam tanta graça, que não pararam de rir. Três dias estive chorando no meu quarto, até que numa manhã entrou um dos rapazes para retirar umas rodas velhas e nem bom dia me deu...
Foi então quando me convenci que sou invisível... Parei no meio da sala para ver se me tornando um estorvo me olhavam. Porém minha filha segui varrendo sem me tocar, os meninos corriam em minha volta de um lado para o outro, sem tropeçar em mim.

Outro dia os meninos agitados me vieram dizer que no dia seguinte nós iríamos todos passar um dia no campo. Fiquei muito feliz. Fazia tanto tempo que eu não saia de casa e mais ainda ir ao campo! Quis arrumar as coisas com calma. Nós velhos demoramos muito ao fazer qualquer coisa; por isso adiantei meu tempo, para não atrazá-los. Rápidos eles entravam e saiam da casa correndo levando as bolsas e brinquedos para o carro. Eu já estava pronta, e muito feliz permanecia no saguão a esperá-los.

Quando me dei conta eles já tinham partido e o carro desapareceu envolto em algazarra; compreendi que não estava convidada, talvez porque não coubesse no carro, ou porque meus passos lentos iriam impedí-los de caminhar a seu gosto, pelo bosque. Senti claramente como meu coração se encolheu e a minha face ficou tremendo como quando a gente tem que engolir a vontade de chorar. Eu entendo; eles vivem o mundo deles. Riem, gritam, sonham, choram, se abraçam, se beijam... E eu já nem sinto mais o gosto de um beijo na face.

Antes beijava os pequenimos; era um prazer enorme tê-los em meus braços, como se fossem meus. Sentia sua pele tenrinha e sua respiração doce bem perto de mim. A vida nova me produzia um alento e até me dava vontade de cantar canções que nunca acreditava me lembrar.

Porém um dia minha neta Laura, que acabava de ter um bebê disse que não era bom que os velhos beijassem os bebês, por questão de saúde...

Desde então já não me aproximo deles; não quero lhes passar algum mal por minhas imprudências. Tenho tanto medo de contaminá-los!...

Eu bendigo a todos e lhes perdôou, porque...

QUE CULPA TENHO DE TER ME TORNADO INVISÍVEL!
Crédito = Hamilton Slide